Escrito por: Outros
VoltarO Brasil está assustado com o Brasil que emergiu do passado
22 de Março de 2018
O Brasil de hoje está assustado com o Brasil do passado, que emergiu do submundo dos crimes da elite econômica colonial e dos servidores dela, encrostados no aparelho do estado.
Para compreender o Brasil de hoje é preciso descer aos porões da história. Sem isso, não se entende a estupidez de quem obedeceu a ordem e apertou o gatilho no assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Pedro Gomes.
Não entende o ódio de classe pregado por Bolsonaro e seus seguidores nas redes sociais. Não entende a conspiração de políticos, empresários e rentistas, magistrados e policiais, donos de grandes redes de mídia, articulados para derrubar governos democráticos.
Se esquece que muito antes do tráfico de drogas, era livre o tráfico de escravos monopolizado pelos ingleses, donos da maior frota de navios negreiros do mundo.
O fio da história deve sempre ser trazido como luz para iluminar o cenário político, econômico, social e cultural do Brasil e dos que sofrem no corpo e no espírito a violência, a chaga da subordinação, da exploração, dos salários miseráveis, ou nenhum, da negação de direitos elementares, comuns nas sociedades democráticas, civilizadas.
A ilegalidade e a violência são inerentes aos golpes de estado. Para o poder econômico, a democracia ameaça a ordem estabelecida pelas forças políticas dominantes, tradicionais.
As mãos de brancos proprietários e rentistas são sujas de sangue índio e sangue negro, das tortura e assassinato de mulheres e homens que lutam contra as injustiças, pela democracia e pela igualdade, desde tempos idos.
Os massacres, a escravidão e o açoite de indígenas e negros, por bandeirantes, senhores e capatazes, nas masmorras e nos pelourinhos, são as raízes dos tribunais brasileiro e das forças policiais e militares.
Na mesma semana que a vereadora Marielle Franco foi executada, professores, que defendiam seus direitos, foram espancados pela polícia dentro da Câmara de Vereadores, em São Paulo, magistrados e policiais destilaram ódio de classe e homofobia nas redes sociais com bárbaras difamações contra Marielle e juízes fizeram greve pela manutenção da corrupção salarial (ganhos ilegais criados por eles mesmos), e dos privilégios de casta.
Esse é o retrato de um momento da sociedade brasileira que revela a face colonial, bandeirante e pelourinho do aparato do Estado brasileiro, que continua nos dias de hoje, maquiada de “modernidade”.
É justo que se faça devidas ressalvas a servidores públicos cidadãos, que lutam pela democratização do Estado, cumprem dignamente com suas funções no provimento de direitos e garantias constitucionais iguais para cidadãs e cidadãos.
Em 1986, depois da grande jornada de lutas pelo restabelecimento da democracia, que derrotou 21 anos de obscurantismo e violência, constituintes se sentaram para alinhavar a plataforma jurídica de garantias do restabelecimento do estado democrático de direito e da cidadania.
Formou-se consenso de que aquele era o momento de plantar as bases e as estruturas definitivas de um Estado moderno com plena autonomia política, administrativa e financeira dos poderes da República e dos entes federados. E fizeram a “Constituição cidadã” como a denominou Ulysses Guimarães.
Seguramente, imaginaram que as instituições criadas para dar sustentação à democracia, garantir direitos individuais e coletivos, definitivamente não permitiriam a volta do arbítrio, da ilegalidade, de ditaduras, e que a democracia estaria assegurada para as gerações futuras, para superação das desigualdades e dos problemas mais graves do Brasil.
Evidentemente não imaginaram que no futuro o judiciário, o Ministério Público, a Polícia Federal, seriam sequestrados por servidores autoritários, arrogantes, negligentes, sem compromissos com a Constituição, com a democracia e a cidadania, que se colocariam a serviço da ordem estabelecida pelos de cima e se alinhassem com interesses de grandes corporações internacionais.
A perseguição ao ex-presidente Lula pelo juiz Sérgio Moro, por exemplo, por procuradores, policiais, com a anuência do Supremo Tribunal Federal, que avaliza a ilegalidade e o golpe de Estado, é o exemplo que melhor revela as raízes históricas de um poder colonial que resiste, não admite a democracia e desrespeita solenemente as regras constitucionais vigentes.
O caso Lula ultrapassou as fronteiras brasileiras e expôs ao mundo o atraso das autoridades e de suas instituições.
É impossível olhar o Brasil e não ver o Estado branco, ainda colonial, com funcionários públicos, guardadas as devidas exceções, ainda de pose e hábitos monárquicos, como se estivessem a serviço da corte, de senhores, proprietários e rentistas, e não de cidadãs e cidadãos.
No parlamento, no judiciário, no Ministério Público, nas forças armadas e policiais, lá está a grande maioria branca, europeia. Nos presídios, nas comunidades pobres, no campo, a imensa maioria de negros, indígenas e seus descendentes, abandonada à própria sorte.
E, nos cemitérios, Marielles, Andersons, Chico Mendes, Margaridas, Zumbis, Tiradentes, Antônio Conselheiro, nações indígenas inteiras, os chacinados de Eldorado do Carajás, e tantos outros condenados, encarcerados por magistrados, torturados e mortos por forças policiais e militares.
Laurez Cerqueira é escritor e colunista