A despeito de sua consistência interna, o trabalho apresenta erros conceituais que afetam a forma da definição da principal variável do estudo: os investimentos. Esse fato, como consequência, distorce os resultados.
O primeiro problema do estudo foi tratar a área de abastecimento (refino, transporte e comercialização) como se fosse igual ao refino para medir os impactos dos investimentos sobre aumento da capacidade do refino. Dos US$ 100 bilhões, entre 2003 e 2015, há investimentos relevantes em transporte por dutos, terminais e marítimo (12 navios foram comprados e entregues para a Transpetro, subsidiária da Petrobras). Ou seja, o estudo somou aos investimentos no refino os investimentos em dutos, terminais e navios para estimar o impacto dos investimentos em refino sobre o aumento da capacidade do refino. Pode isso, “base na realidade”? Pode não. O pessoal andou somando jaca com laranja.
A Petrobras não divulga separadamente os investimentos em transporte, mas é possível estimar esses valores por meio dos planos de negócios da Petrobras (2007-2011; 2008-2012; 2009-2013; 2010-2014; 2011-2015), que apresentam as projeções dos investimentos da empresa. Uma possibilidade é utilizar a média das proporções dos investimentos planejados em transporte (dutos, terminais e marítimos), em relação ao abastecimento, que foi de 13,6%. Com isso, é possível estimar em US$ 13,6 bilhões os investimentos em transporte, entre 2003 e 2015 (13,6% vezes os investimento total do abastecimento de US$ 100 bilhões, conforme estudo). Com isso, os investimentos estimados em refino, entre 2003 e 2015, caem para US$ 86,4 bilhões.
Olha que esse não foi o maior erro. O principal problema do estudo foi achar que o Capex do refino, transporte e comercialização, divulgado pela Petrobras, é sempre destinado a ampliação da capacidade produtiva. Não é. A Petrobras realiza investimentos em crescimento, que gera ampliação de capacidade, e investimentos em manutenção, qualidade dos derivados, conversão e modernização, que não gera aumento de capacidade. Um leitura do relatório financeiro da Petrobras de 2021 (p.11) poderia ter sanado o erro cometido pelo estudo. A título de exemplo: a Petrobras, no 4T21, investiu no refino, transporte e comercialização US$ 258 milhões, sendo 75% em investimento de manutenção. Não, não é Opex, mas sim investimento em manutenção contabilizado pela Petrobras na planilha do Capex, utilizada pelo estudo. Isso fica explícito no trecho do relatório financeiro da Petrobras 2021 (p.11):
Já no segmento de Refino, Transporte e Comercialização, os investimentos totalizaram US$ 258 milhões no 4T21, um crescimento de 14% quando comparados ao 3T21, sendo aproximadamente 75% em manutenção. Este aumento ocorreu, principalmente, devido à mobilização de materiais para utilização nas refinarias REPLAN, REDUC, REFAP, RECAP, REPAR, REVAP e RPBC.
Ao não separar o Capex destinados para aumento da capacidade de produção do refino e para outros fins (qualidade do diesel e gasolina, conversão, modernização e manutenção), o estudo superestimou os investimentos destinados a ampliação da capacidade, utilizando uma definição macroeconômica do conceito de investimento sem considerar as especificidades da linguagem contábil, utilizado pela companhia e as características do setor. Assim como para o abastecimento, a Petrobras não divulga de forma detalhada os investimentos destinados a expansão e para outros fins, mas é possível obter informações de investimento realizados e estimativas com base no plano de negócios.
No período entre 2003 e 2015 a Petrobras realizou expressivos investimentos – que não expandem a capacidade – voltados à adequação da qualidade do diesel e gasolina (redução do teor de enxofre que implicou na diminuição das emissões de poluentes) em virtude de mudanças regulatórias implementadas pela Agência Nacional de Petróleo e Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). O PGN 2012-2016 (p.14) detalhou anualmente esse tipo de investimentos realizado, entre 2005 e 2011, que foi de US$ 20,2 bilhões, e estimou os investimentos, entre 2012 e 2015, de US$ 9 bilhões. Somando o valor realizado e o estimando, entre 2003 e 2015, e aplicando o deflator do estudo chegamos ao valor do investimento em qualidade de US$ 27,4 bilhões. Com isso, o investimento em refino, destinado ao aumento da capacidade, caem de US$ US$ 86,4 bilhões para R$ 58,9 bilhões.
Ou seja, o estudo incluiu US$ 27,4 bilhões dos investimentos na melhoria de qualidade dos diesel e gasolina (que agora estão adequados ao padrão europeu de menor emissão de poluentes) como se fosse investimentos do refino destinado a expansão da capacidade. Pode isso, “base na realidade”? Pode não. Diminuir a emissão de poluentes, num contexto de crise climática, é fundamental para a população brasileira como para o planeta.
Quem disse que parou por aqui? Tem mais. No período entre 2003 e 2015, a Petrobras realizou investimentos significativos, que não aumentam a capacidade, destinados a conversão, a modernização e a manutenção, entre outros, da ordem de US$ 35 bilhões em valores de 2002 (deflator do estudo citado). Esse valor foi estimado levando em conta as informações dos planos de negócios, utilizando o mesmo procedimento descrito anteriormente.
Esses investimentos permitiram adaptar o parque de refino da Petrobras para processar um maior volume de petróleo produzido nacionalmente (oriundo do pré-sal), buscando capturar o diferencial econômico entre o petróleo leve e pesado. Em 2003, o petróleo doméstico processado nas refinarias da Petrobras era de 79%, sendo que em 2020 essa proporção foi de 91%. Além disso, os investimentos em modernização ampliaram a complexidade (medido pelo índice de Nelson, que varia entre 1 e 20) das refinarias da Petrobras, implicando numa maior rentabilidade econômica. Quanto maior o índice de complexidade maior será a capacidade da refinaria em produzir derivados mais valiosos em relação a um barril de petróleo. Ou seja, complexidade é uma medida relativa do custo de contrução de uma refinaria em relação a sua capacidade de refinar derivados mais caros (menor produção de derivados de fundo de barril – óleos combustíveis). Em 2021, as 10 maiores refinarias, em termos de capacidade, da Petrobras possuíam índice de Nelson superior a 6, sendo que a REDUC possui um índice de 15 (FORM-20F PETROBRAS, 2021).
Em outras palavras, o estudo incluiu cerca de US$ 35 bilhões dos investimentos em conversão, modernização e manutenção como se fosse investimentos em expansão de capacidade do refino. Pode isso, “base na realidade”? Pode não. Investimentos em modernização e conversão incorporam elementos tecnológicas ao estoque de capital da Petrobras, ampliando a capacidade de geração de maiores ganhos financeiros. Cadê a tecnologia incorporada? O estudo não levou em conta.
Depois disso tudo, pode-se agora estimar os investimentos da Petrobras destinados a ampliação da capacidade entre 2003 e 2015. Descontando esses US$ 35 bilhões dos R$ 58,9 bilhões, obtém-se os investimentos da Petrobras destinados a expansão da capacidade no refino que foi de cerca de US$ 24 bilhões. Esse foi o montante de investimentos destinados a expansão da capacidade do refino da Petrobras e não os valores estimados pelo estudo de US$ 100. Erros em cima de erros produziram esse valor completamente fora da base da realidade, que impede qualquer tipo de comparação com os investimentos do primeiro período do estudo ou com outros investimentos internacionais.
Mas esses investimentos (para expansão da capacidade) realizados pela Petrobras de US$ 24 bilhões, entre 2003 e 2015, expandiram de forma satisfatória a capacidade do refino da Petrobras? Nesse período, utilizando a mesma hipótese de tempo de maturação do investimento no estudo, a expansão da capacidade do refino foi de 400 mil b/d. Com essa expansão o custo de capacidade de cada barril por dia foi de US$ 62.426, bem abaixo dos US$ 263.747 encontrado pelo estudo, mas acima, por exemplo, do maior custo de investimento por barril-dia de capacidade de refino de US$30 mil, apresentado pela consultoria norueguesa Sintef (citada pelo estudo).
Agora sim é possível responder à questão acima: os investimentos em expansão da capacidade do refino foram parcialmente satisfatórios, em relação a geração de capacidade, em virtude de custos acima da média do mercado internacional.
Esses custos mais elevados da ampliação da capacidade, entre 2003 e 2015, podem ser explicados pelos seguintes elementos: 1) o período de investimento em expansão das refinarias ocorreu simultaneamente com o auge dos investimentos em infraestrutura no Brasil, momento este em que as empresas de engenharia, que iriam realizar a expansão do refino, estavam muito demandadas pelos projetos do pre-sal e pelas obras do PAC. Isso provocou um aquecimento do mercado de infraestrutura, implicando elevação dos custos de construção de novas unidades; 2) dificuldades encontradas pelo planejamento e execução dos projetos da Petrobras de expansão do refino depois de quase 32 anos sem a construção de uma nova refinaria no Brasil. Os atrasos sucessivos da obra do Comperj no Rio de Janeiro é uma das expressões dessas dificuldades; e 3) atrasos na execução dos projetos provocando pela forma de atuação da Operação Lava Jato que desestruturou a cadeia de fornecedores nacionais para os projetos de expansão da Petrobras.
Com o aprendizado dos últimos anos, no que diz respeito aos investimentos de expansão no refino, a Petrobras tem capacidade técnica, econômica e financeira para retomar esse tipo de investimento, inclusive com estrutura de custo mais próximo com as observadas no mercado internacional, tão necessário para reduzir a vulnerabilidade externa dos derivados, para aumentar a margem do refino da Petrobras e para a geração de emprego² e renda no Brasil.
No entanto, o estudo citado, a coluna da Folha e o editorial do O Globo defendem que não haveria nenhum sentido retomar os investimentos do refino pela Petrobras, pois seria mais eficiente exportar petróleo e importar derivados (defesa do liberalismo e de que o abastecimento seria garantido pelo mercado) e que o Estado brasileiro seria sempre ineficiente e que não deveríamos “tentar realizar sonhos de poder sem base na realidade”. Esse é o debate que nos acompanha desde a fundação da Petrobras. Somos ou não, enquanto país, capazes de desenvolvermos os nossos projetos com autonomia.
Lá atrás, como agora, aflorava e aflora o complexo de “vira-lata” rodriguiano dos setores dominantes brasileiros e das camadas sociais média que diz que não somos capazes. A criação da Petrobras estatal foi um sonho de muitos nas décadas de 40 e 50 no Brasil, se mostrou central para o desenvolvimento brasileiro e, mais recentemente, para a descoberta do pré-sal. Isso permitiu a autossuficiência brasileira do petróleo, alcançada na década de 2000, sonhada há bastante tempo. Não me surpreende esse complexo de vira-lata do andar de cima brasileiro, mas o que, realmente, me surpreendeu foi o conjunto de erros do estudo que foi utilizado como “base na realidade” para defender uma ideologia liberal transvestida de tecnicalidade.
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Nota
[1] Professor do Instituto de Economia da UFRJ e Pesquisador do INEEP/FUP.