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Ditadura nunca mais?

01 de Abril de 2019

Memória

Passeata silenciosa lembra as vítimas de ontem e hoje

"Não vamos sucumbir", disse o arquiteto Ricardo Ohtake diante do monumento – que ele mesmo projetou – em homenagem aos mortos e desaparecidos políticos da ditadura, no Ibirapuera, em São Paulo, no encerramento de ato que reuniu milhares contra a celebração que o governo Bolsonaro promoveu no domingo, 31 de março.

Milhares de pessoas se concentraram das15hàs 20h do domingo (31) no Parque do Ibirapuera, na zona sul paulistana, em ato que começou com apresentações musicais e, ao entardecer, teve uma passeata silenciosa em memória das vítimas da violência do Estado – de ontem e de hoje.

Ao final, flores, velas e fotografias foram postas no monumento, enquanto muitos choravam e se abraçavam. 

Ato

De iniciativa da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, a chamada I Caminhada do Silêncio reuniu artistas como Eduardo Gudin, Jean Garfunkel, Mário Gil, Breno Ruiz e Vicente Barreto, arregimentados, principalmente, por Renato Braz. Em um palco decorado por bordados, ele cantou, entre outras, Coração Civil (Milton Nascimento/Fernando Brant) e Cálice (Gilberto Gil/Chico Buarque), com trechos de Fado Tropical (Ruy Guerra/Chico).

Jean declama: "Sabendo da mentira e da impostura/ Da mordaça e da censura/ Sabendo da fragilidade da palavra liberdade/ Da relevância da palavra vigilância/ Da inconsequência da palavra violência/ Da desventura da palavra ditadura". Gudin cantou os clássicos Mordaça (dele e de Paulo César Pinheiro) e Velho Ateu (Gudin e Roberto Riberti). O português Roberto Leão interpretou Cantiga de Maio, de Zeca Afonso, autor do "hino" da Revolução dos Cravos, Grândola, Vila Morena.

Nenhum discurso foi feito. A passeata saiu do interior do parque às 18h15, com os manifestantes em silêncio e segurando velas. A maioria vestia roupas pretas, conforme pedido dos organizadores.

No caminho, o ex-ministro de Direitos Humanos Paulo Sérgio Pinheiro comentava seu espanto com o momento político e a postura do governo, que determinou a "comemoração" do golpe de 1964. "É extremamente deprimente", dizia, andando ao lado do também ex-ministro José Carlos Dias e do brasilianista e historiador norte-americano James Green. "Por outro lado, é importante que a sociedade civil está atenta e viva", acrescentou Pinheiro, hoje na presidência da Comissão Arns de direitos humanos, da qual também participa outro ex-ministro, Paulo Vannuchi, mais um participante da passeata.

Pinheiro acredita que manifestações como a de ontem vão se repetir. Mas manifestava perplexidade ao lembrar que uma das recomendações da Comissão Nacional da Verdade, da qual participou, foi justamente no sentido de proibir exaltações oficiais ao golpe de 1964 – que a CNV reputou como responsável por graves violações de direitos humanos, como tortura, assassinato e desaparecimentos. "A verdade oficial do Estado é o relatório (da Comissão)", lembrou.

Crimes de ontem e de hoje

Às 19h05, sob aplausos, o público chega ao monumento, inaugurado em 2014 pelo então prefeito Fernando Haddad, à margem da Avenida Pedro Álvares Cabral e perto da Assembleia Legislativa. A procuradora regional da República Eugênia Gonzaga, presidenta da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, toma a palavra, enquanto a passeata ainda continuava. Artistas começam a citar dados do período ditatorial e já da democracia, como assassinatos e chacinas, nomes de desaparecidos e tragédias como as de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais.

Como havia muita gente, foi usado o método do jogral, em que cada grupo vai passando as falas adiante. O ex-secretário estadual de Justiça Belisário dos Santos Júnior é um deles, enquanto o guitarrista Edgard Scandurra, de bicicleta, observa. Crescem os gritos de "ditadura nunca mais" e "tortura é crime, merece punição".

Sottili disse não lembrar de um "31 de março tão polarizado" em muitos anos, destacando a reação social contra a ditadura e pela democracia. "A inabilidade política (do governo) criou um processo de mobilização muito forte e que tende a crescer. O vídeo que o Planalto soltou hoje é de uma atrocidade, de uma provocação desmedida", afirmou, referindo-se a vídeo divulgado nas redes sociais em defesa do golpe de 1964. É justamente esse material que será usado contra o governo, lembrou o ex-secretário de Direitos Humanos.

Antes do ato no Ibirapuera, o Instituto Vladimir Herzog e familiares de desaparecidos políticos haviam divulgado nota para repudiar o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que havia negado seguimento a um mandado de segurança contra a determinação de Bolsonaro para a realização de comemorações do golpe. Segundo o ministro, não se tratava de "ato passível de ser questionado por meio de mandado de segurança". Para Mendes, não parecia adequado "enquadrar como ato de autoridade do presidente da República a opinião de natureza política transmitida por seu porta-voz".

Na nota, o IVH e os familiares afirmam que o presidente da República "quebrou seu juramento à Constituição" ao determinar às Forças Armadas e ao Ministério da Defesa que tomassem providências para celebrar o golpe. "A Constituição democrática de 1988 e as normas internacionais de proteção de direitos humanos exigem que o Estado brasileiro reconheça que cometeu violações a direitos humanos e que promova a reparação para todas as vítimas e seus familiares", dizem no documento. "Qualquer ato de comemoração, celebração ou festejo do dia 31 de março de 1964 por parte das Forças Armadas poderá ser considerado um ato de improbidade e será comunicado ao Ministério Público Federal."

"Vamos novamente provocar o Ministério Público", disse Sottili, para quem o vídeo comprova a participação do presidente. "Agora tem ato de ofício", acrescentou. "E vamos pedir para que a ONU mande o relator para uma visita ao Brasil", lembrou, referindo-se a Salvioli.