Morre Jacob Gorender: 90 anos entre livros e lutas
11 de Junho de 2013
Cultura
Jacob Gorender, um dos mais respeitados intelectuais da esquerda brasileira, faleceu na terça-feira (11), aos 90 anos....
Gorender, 90 anos entre livros e lutas
Matéria de Patrícia Benvenuti
A trajetória de Jacob Gorender se mistura a alguns dos principais acontecimentos do país no século 20. Membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB) por quase três décadas e criador do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), Gorender foi muito além da militância prática: tornou-se um dos mais respeitados intelectuais da esquerda brasileira. Em 20 de janeiro deste ano, Gorender completou 90 anos, marcados por estudo, lutas políticas e uma vasta produção acadêmica. Em seus diversos livros, artigos e ensaios, Gorender apresentou ideias até então inéditas sobre o Brasil e sua formação socioeconômica.
Vida
Filho de imigrantes russos judeus, Jacob Gorender nasceu em 20 de janeiro de 1923 em Salvador (BA), e sua infância foi marcada por sérias dificuldades econômicas. Começou a trabalhar aos 11 anos, dando aulas particulares e, aos 17, era arquivista em um jornal chamado O Imparcial. Ingressou na faculdade de Direito em 1941 e, em meio a atividades no movimento estudantil, travou contato com Mário Alves, que já militava no Partido Comunista Brasileiro. No início de 1942, Gorender tornou-se o mais novo membro do “Partidão”.
O interesse pela política veio de casa. Em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em 2006, Gorender contou ter sido influenciado pelas ideias do pai. “Meu pai, particularmente, era um homem com ideias, digamos assim, esquerdistas. Não tinha formação cultural elevada, não frequentou academias, era um homem muito simples. Mas gostava de ler e, de certo modo, a sua posição influiu muito nas minhas atitudes”, afirmou.
Em 1943, aos 20 anos, outra decisão importante na vida do jovem: alistou-se como voluntário da Força Expedicionária Brasileira (FEB) para combater o nazifascismo na 2ª Guerra Mundial. Ao retornar ao Brasil, em 1945, encontrou o Partido Comunista na legalidade. Instalou-se por um período no Rio de Janeiro, onde conheceu Luís Carlos Prestes. Depois de alguns meses, retornou a Salvador, onde decidiu abandonar de vez a graduação em Direito. Com isso, passou a dedicar-se integralmente à militância política, tornando-se membro do secretariado do Comitê Municipal do PCB, em Salvador.
Em 1946, mudou-se novamente para o Rio de Janeiro, onde integraria a redação do jornal Classe Operária, órgão central do Partido Comunista. Em 1955, outra viagem internacional: Gorender foi à União Soviética para participar de um curso da escola superior do Partido Comunista soviético.
Ali, os estudantes tinham lições de materialismo dialético, economia, política, história do movimento operário mundial, dentre outros pontos. Gorender integrava uma turma com 50 brasileiros, coordenada por Maurício Grabois.
Gorender permaneceu na URSS por dois anos e, ao retornar ao Brasil, seguiu com a militância no Comitê Central do PCB – do qual se tornaria membro efetivo em 1960. Em 1964, com o golpe militar, Gorender passou a atuar na clandestinidade.
Com a solidariedade dos amigos, pôde continuar com seus estudos. Valdizar Pinto do Carmo e sua companheira, Sonia Irene do Carmo, haviam conhecido Gorender em 1960, durante um encontro de estudantes militantes do PCB. Alunos da Universidade de São Paulo (USP), o casal facilitava o acesso de Gorender aos livros. “Para dar apoio a ele, levantávamos bibliografia sobre o período estudado e retirávamos das bibliotecas os materiais que ele indicava”, recorda Valdizar.
A esta altura, conta o amigo, Gorender estava interessado sobretudo na história do período colonial do Brasil. O intelectual permaneceu no PCB até 1968, quando saiu da organização para fundar o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), ao lado de Mário Alves, Apolônio de Carvalho e outros comunistas.
Prisão
Em 1970, Gorender passou por uma de suas experiências mais marcantes: foi preso em São Paulo por agentes do Esquadrão da Morte, chefiado pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, e levado ao Departamento de Ordem Política e Social (Dops), onde foi torturado. O destino de Gorender foi o presídio Tiradentes.
Nesse momento, tinha 47 anos, muitos a mais que seus colegas de prisão – a maioria na casa dos 20. Ali, passou a dedicar-se ainda mais aos livros. Quem o ajudou na missão foi sua companheira, Idealina, que levava, nos dias de visita, as obras pedidas pelo marido.
Graças a Gorender, a cela tornou-se um ambiente de difusão de conhecimento, como conta o jornalista e escritor Alipio Freire. “O Jacob sempre organizou debates para a gente na cela. Ele começou com o hábito de incentivar os presos que tinham mais informação a expô-la para os outros. Alguns ensinavam Francês, outros História, era todo tipo de conhecimento”, salienta.
Gorender em seguida organizou um curso sobre história econômica do Brasil, ministrado todas as segundas-feiras à noite em sua cela. A atividade era “concorrida” na cadeia, como relembra o jornalista e artista plástico Sérgio Sister. “O Jacob era a grande personalidade da cadeia. Nós aprendemos muito com ele”, afirma.
O curso sintetizava algumas das ideias que Gorender defenderia em sua tese O Escravismo Colonial, que viria a ser lançado em 1978 pela editora Ática
Legado
Jacob foi libertado da prisão cerca de dois anos depois, quando passou a se dedicar integralmente ao trabalho de tradutor e a investigar a realidade brasileira. Uma das principais qualidades do intelectual, para Sérgio Sister, era o rigor que dedicava aos seus objetos de estudo.
“O Jacob é uma das figuras da esquerda brasileira que sempre exigiu rigor no estudo e na apreciação das questões. Ele tinha muita preocupação com o conhecimento da realidade brasileira, em não deixar a coisa no ‘chute’ ou no romantismo”, destaca.
Por questões de saúde, Jacob Gorender não pôde conversar com a reportagem do Brasil de Fato. No entanto, os amigos e companheiros de militância ressaltam a importância do pensador para suas trajetórias e seu papel como educador.
“O Jacob é um dos caras mais sérios e lúcidos para analisar a realidade brasileira e os nossos problemas como militantes comunistas, o que queremos para nós mesmos e para a sociedade brasileira. Ele foi muito importante para aquela geração, para quebrar alguns mitos da verdade absoluta de sempre”, diz Alipio Freire.
Autodidata, Jacob Gorender permaneceu à margem do campo acadêmico durante muitas décadas. Somente em 1994, aos 71 anos, seu mérito foi reconhecido com o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Fonte - Fotos: Brasil de Fato
Dica de leitura:
Combate nas trevas
A história da esquerda brasileira está cercada para as jovens gerações de mistério e fascínio. Mistério, porque aparece quase sempre fragmentada nas versões da direita, nos comentários apaixonados de velhos militantes ou em referências enigmáticas feitas no curso das lutas políticas de hoje. Assim, é frequente que os jovens militantes do movimento sindical ou de outros movimentos interpelem seus companheiros mais velhos para perguntar-lhes o que significa tal ou qual sigla, o que ocorreu exatamente em tal momento de nossa história ou qual é o conteúdo político do maoísmo, do trotskismo, do guevarismo etc.
Como esta história é apreendida em pedaços, como se tratasse de um vasto quebra-cabeças, e como muitas vezes ela é invocada para apoiar ou negar posições políticas, é normal que provoque fascínio e estimule a curiosidade de muitos.
O livro de Jacob Gorender, Combate nas Trevas - A Esquerda Brasileira: das ilusões perdidas a luta armada, vai contribuir para que esta curiosidade seja em boa parte satisfeita. Gorender foi até 1967 dirigente do Partido Comunista Brasileiro, tendo com ele rompido para formar o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Em 1970 foi preso, torturado, tendo ficado quase dois anos nos cárceres da ditadura.
A partir de sua vivência e recordações, mas, sobretudo, de uma vasta pesquisa em livros, documentos de organizações e da realização de dezenas de entrevistas, o autor pode reconstituir a trajetória dos partidos e grupos de esquerda, sobretudo no período que vai de 1964 até 1974, ano em que a esquerda brasileira se encontrava mergulhada em sua mais grave crise, depois de ter sido esmagada pela repressão da ditadura.
Um dos pontos importantes da reconstituição de Gorender é o lugar dado ao período pré-64, particularmente à intensa fase das lutas populares entre 1961 e 1964, quando grandes contingentes de operários, estudantes, camponeses e setores de classe média, sem falar nos sargentos e alguns segmentos da própria oficialidade das Forças Armadas, movimentaram-se pela consecução das chamadas "Reformas de Base", um conjunto de reivindicações apresentadas como capazes de promover um desenvolvimento econômico com maior distribuição de renda e aprofundar a democracia no país. A derrota da esquerda e dos movimentos populares em 64 acabou por generalizar a impressão de que o movimento nesse período não tinha tido a relevância que se dizia, ou, no melhor dos casos, era excessivamente superficial. Depois de ler os capítulos que o autor dedica a esta fase, a análise sobre ela terá de ser mais judiciosa.
Mas esta primeira parte tem como função básica introduzir elementos de compreensão para o que vem depois.
Entre 1964 e 1968, a despeito da perplexidade e mesmo de reações primárias de certos setores da esquerda frente ao golpe, criam-se condições para uma intervenção desta em alguns movimentos sociais de grande importância, como é o caso do movimento operário e do estudantil, ambos granjeando simpatias junto a camadas das classes médias que se sentiam ludibriadas pelos militares.
O grande derrotado na esquerda é o PCB, e do seu interior, principalmente, vão surgir muitas das organizações que começarão a atuar nesse período, algumas com claras definições pelo desencadeamento a curto prazo de ações militares contra o governo. Num outro cenário desenvolve-se, igualmente, uma crise no interior dos grupos que deram ou apoiaram o golpe. O resultado deste último enfrentamento é o fechamento de 13 de dezembro de 68 (o AI-5), quando o governo cria as condições, entre outras coisas, para reprimir a esquerda com toda a impunidade. Gorender mostra como modificam-se as condições de luta. A esquerda corta-se das massas, mas continua a apostar na iminência da crise do capitalismo brasileiro, que criaria condições para a luta revolucionária (tida como sinônimo de luta armada). O período que vai de 68/69 até 74 é o desmantelamento total da esquerda revolucionária, o que o Estado consegue através de uma política de utilização sistemática da tortura.
Talvez fosse importante que Gorender enfatizasse mais o fato de que a derrota da esquerda - da nova e da velha - não se deve tanto à repressão, que foi violenta, mas tem de ser creditada em muito aos próprios erros das organizações. Ele tem presente este fato, e o afirma muitas vezes, mas alguns aspectos ficam a nos exigir maior aprofundamento. Por exemplo, em que medida o fracasso não se deve ao fato de que a ruptura da nova esquerda com a velha foi mais aparente do que real, não só quanto à caracterização de seu projeto de revolução, como por sua incapacidade de repensar o problema do partido político, elitista e messiânico, e pela ausência de uma reflexão mais de fundo sobre o problema da democracia.
Estas discussões têm uma importância particular para o PT hoje. No interior do partido militam milhares de companheiros vindos dessas organizações de esquerda. Uma grande maioria não chegou a realizar um ajuste de contas com seu passado. Coisa que o livro de Gorender em muito contribuirá para que ocorra. Somente isto já aconselha sua leitura e, sobretudo, sua discussão.
Marco Aurélio Garcia é professor da Unicamp, historiador e coordenador do arquivo Edgar Leuenroth, que se dedica ao estudo da memória do movimento operário brasileiro. É membro do Diretório Regional do PT - SP
Combate nas trevas
A história da esquerda brasileira está cercada para as jovens gerações de mistério e fascínio. Mistério, porque aparece quase sempre fragmentada nas versões da direita, nos comentários apaixonados de velhos militantes ou em referências enigmáticas feitas no curso das lutas políticas de hoje. Assim, é frequente que os jovens militantes do movimento sindical ou de outros movimentos interpelem seus companheiros mais velhos para perguntar-lhes o que significa tal ou qual sigla, o que ocorreu exatamente em tal momento de nossa história ou qual é o conteúdo político do maoísmo, do trotskismo, do guevarismo etc.
Como esta história é apreendida em pedaços, como se tratasse de um vasto quebra-cabeças, e como muitas vezes ela é invocada para apoiar ou negar posições políticas, é normal que provoque fascínio e estimule a curiosidade de muitos.
O livro de Jacob Gorender, Combate nas Trevas - A Esquerda Brasileira: das ilusões perdidas a luta armada, vai contribuir para que esta curiosidade seja em boa parte satisfeita. Gorender foi até 1967 dirigente do Partido Comunista Brasileiro, tendo com ele rompido para formar o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Em 1970 foi preso, torturado, tendo ficado quase dois anos nos cárceres da ditadura.
A partir de sua vivência e recordações, mas, sobretudo, de uma vasta pesquisa em livros, documentos de organizações e da realização de dezenas de entrevistas, o autor pode reconstituir a trajetória dos partidos e grupos de esquerda, sobretudo no período que vai de 1964 até 1974, ano em que a esquerda brasileira se encontrava mergulhada em sua mais grave crise, depois de ter sido esmagada pela repressão da ditadura.
Um dos pontos importantes da reconstituição de Gorender é o lugar dado ao período pré-64, particularmente à intensa fase das lutas populares entre 1961 e 1964, quando grandes contingentes de operários, estudantes, camponeses e setores de classe média, sem falar nos sargentos e alguns segmentos da própria oficialidade das Forças Armadas, movimentaram-se pela consecução das chamadas "Reformas de Base", um conjunto de reivindicações apresentadas como capazes de promover um desenvolvimento econômico com maior distribuição de renda e aprofundar a democracia no país. A derrota da esquerda e dos movimentos populares em 64 acabou por generalizar a impressão de que o movimento nesse período não tinha tido a relevância que se dizia, ou, no melhor dos casos, era excessivamente superficial. Depois de ler os capítulos que o autor dedica a esta fase, a análise sobre ela terá de ser mais judiciosa.
Mas esta primeira parte tem como função básica introduzir elementos de compreensão para o que vem depois.
Entre 1964 e 1968, a despeito da perplexidade e mesmo de reações primárias de certos setores da esquerda frente ao golpe, criam-se condições para uma intervenção desta em alguns movimentos sociais de grande importância, como é o caso do movimento operário e do estudantil, ambos granjeando simpatias junto a camadas das classes médias que se sentiam ludibriadas pelos militares.
O grande derrotado na esquerda é o PCB, e do seu interior, principalmente, vão surgir muitas das organizações que começarão a atuar nesse período, algumas com claras definições pelo desencadeamento a curto prazo de ações militares contra o governo. Num outro cenário desenvolve-se, igualmente, uma crise no interior dos grupos que deram ou apoiaram o golpe. O resultado deste último enfrentamento é o fechamento de 13 de dezembro de 68 (o AI-5), quando o governo cria as condições, entre outras coisas, para reprimir a esquerda com toda a impunidade. Gorender mostra como modificam-se as condições de luta. A esquerda corta-se das massas, mas continua a apostar na iminência da crise do capitalismo brasileiro, que criaria condições para a luta revolucionária (tida como sinônimo de luta armada). O período que vai de 68/69 até 74 é o desmantelamento total da esquerda revolucionária, o que o Estado consegue através de uma política de utilização sistemática da tortura.
Talvez fosse importante que Gorender enfatizasse mais o fato de que a derrota da esquerda - da nova e da velha - não se deve tanto à repressão, que foi violenta, mas tem de ser creditada em muito aos próprios erros das organizações. Ele tem presente este fato, e o afirma muitas vezes, mas alguns aspectos ficam a nos exigir maior aprofundamento. Por exemplo, em que medida o fracasso não se deve ao fato de que a ruptura da nova esquerda com a velha foi mais aparente do que real, não só quanto à caracterização de seu projeto de revolução, como por sua incapacidade de repensar o problema do partido político, elitista e messiânico, e pela ausência de uma reflexão mais de fundo sobre o problema da democracia.
Estas discussões têm uma importância particular para o PT hoje. No interior do partido militam milhares de companheiros vindos dessas organizações de esquerda. Uma grande maioria não chegou a realizar um ajuste de contas com seu passado. Coisa que o livro de Gorender em muito contribuirá para que ocorra. Somente isto já aconselha sua leitura e, sobretudo, sua discussão.
Marco Aurélio Garcia é professor da Unicamp, historiador e coordenador do arquivo Edgar Leuenroth, que se dedica ao estudo da memória do movimento operário brasileiro. É membro do Diretório Regional do PT - SP
A história da esquerda brasileira está cercada para as jovens gerações de mistério e fascínio. Mistério, porque aparece quase sempre fragmentada nas versões da direita, nos comentários apaixonados de velhos militantes ou em referências enigmáticas feitas no curso das lutas políticas de hoje. Assim, é frequente que os jovens militantes do movimento sindical ou de outros movimentos interpelem seus companheiros mais velhos para perguntar-lhes o que significa tal ou qual sigla, o que ocorreu exatamente em tal momento de nossa história ou qual é o conteúdo político do maoísmo, do trotskismo, do guevarismo etc.
Como esta história é apreendida em pedaços, como se tratasse de um vasto quebra-cabeças, e como muitas vezes ela é invocada para apoiar ou negar posições políticas, é normal que provoque fascínio e estimule a curiosidade de muitos.
O livro de Jacob Gorender, Combate nas Trevas - A Esquerda Brasileira: das ilusões perdidas a luta armada, vai contribuir para que esta curiosidade seja em boa parte satisfeita. Gorender foi até 1967 dirigente do Partido Comunista Brasileiro, tendo com ele rompido para formar o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Em 1970 foi preso, torturado, tendo ficado quase dois anos nos cárceres da ditadura.
A partir de sua vivência e recordações, mas, sobretudo, de uma vasta pesquisa em livros, documentos de organizações e da realização de dezenas de entrevistas, o autor pode reconstituir a trajetória dos partidos e grupos de esquerda, sobretudo no período que vai de 1964 até 1974, ano em que a esquerda brasileira se encontrava mergulhada em sua mais grave crise, depois de ter sido esmagada pela repressão da ditadura.
Um dos pontos importantes da reconstituição de Gorender é o lugar dado ao período pré-64, particularmente à intensa fase das lutas populares entre 1961 e 1964, quando grandes contingentes de operários, estudantes, camponeses e setores de classe média, sem falar nos sargentos e alguns segmentos da própria oficialidade das Forças Armadas, movimentaram-se pela consecução das chamadas "Reformas de Base", um conjunto de reivindicações apresentadas como capazes de promover um desenvolvimento econômico com maior distribuição de renda e aprofundar a democracia no país. A derrota da esquerda e dos movimentos populares em 64 acabou por generalizar a impressão de que o movimento nesse período não tinha tido a relevância que se dizia, ou, no melhor dos casos, era excessivamente superficial. Depois de ler os capítulos que o autor dedica a esta fase, a análise sobre ela terá de ser mais judiciosa.
Mas esta primeira parte tem como função básica introduzir elementos de compreensão para o que vem depois.
Entre 1964 e 1968, a despeito da perplexidade e mesmo de reações primárias de certos setores da esquerda frente ao golpe, criam-se condições para uma intervenção desta em alguns movimentos sociais de grande importância, como é o caso do movimento operário e do estudantil, ambos granjeando simpatias junto a camadas das classes médias que se sentiam ludibriadas pelos militares.
O grande derrotado na esquerda é o PCB, e do seu interior, principalmente, vão surgir muitas das organizações que começarão a atuar nesse período, algumas com claras definições pelo desencadeamento a curto prazo de ações militares contra o governo. Num outro cenário desenvolve-se, igualmente, uma crise no interior dos grupos que deram ou apoiaram o golpe. O resultado deste último enfrentamento é o fechamento de 13 de dezembro de 68 (o AI-5), quando o governo cria as condições, entre outras coisas, para reprimir a esquerda com toda a impunidade. Gorender mostra como modificam-se as condições de luta. A esquerda corta-se das massas, mas continua a apostar na iminência da crise do capitalismo brasileiro, que criaria condições para a luta revolucionária (tida como sinônimo de luta armada). O período que vai de 68/69 até 74 é o desmantelamento total da esquerda revolucionária, o que o Estado consegue através de uma política de utilização sistemática da tortura.
Talvez fosse importante que Gorender enfatizasse mais o fato de que a derrota da esquerda - da nova e da velha - não se deve tanto à repressão, que foi violenta, mas tem de ser creditada em muito aos próprios erros das organizações. Ele tem presente este fato, e o afirma muitas vezes, mas alguns aspectos ficam a nos exigir maior aprofundamento. Por exemplo, em que medida o fracasso não se deve ao fato de que a ruptura da nova esquerda com a velha foi mais aparente do que real, não só quanto à caracterização de seu projeto de revolução, como por sua incapacidade de repensar o problema do partido político, elitista e messiânico, e pela ausência de uma reflexão mais de fundo sobre o problema da democracia.
Estas discussões têm uma importância particular para o PT hoje. No interior do partido militam milhares de companheiros vindos dessas organizações de esquerda. Uma grande maioria não chegou a realizar um ajuste de contas com seu passado. Coisa que o livro de Gorender em muito contribuirá para que ocorra. Somente isto já aconselha sua leitura e, sobretudo, sua discussão.
Marco Aurélio Garcia é professor da Unicamp, historiador e coordenador do arquivo Edgar Leuenroth, que se dedica ao estudo da memória do movimento operário brasileiro. É membro do Diretório Regional do PT - SP
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Jacob Gorender
Número de páginas: 290
Editora: Editora Ática
Ano de publicação: 1987
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Ano de publicação: 1987
Esgotado
Como esta história é apreendida em pedaços, como se tratasse de um vasto quebra-cabeças, e como muitas vezes ela é invocada para apoiar ou negar posições políticas, é normal que provoque fascínio e estimule a curiosidade de muitos.
O livro de Jacob Gorender, Combate nas Trevas - A Esquerda Brasileira: das ilusões perdidas a luta armada, vai contribuir para que esta curiosidade seja em boa parte satisfeita. Gorender foi até 1967 dirigente do Partido Comunista Brasileiro, tendo com ele rompido para formar o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Em 1970 foi preso, torturado, tendo ficado quase dois anos nos cárceres da ditadura.
A partir de sua vivência e recordações, mas, sobretudo, de uma vasta pesquisa em livros, documentos de organizações e da realização de dezenas de entrevistas, o autor pode reconstituir a trajetória dos partidos e grupos de esquerda, sobretudo no período que vai de 1964 até 1974, ano em que a esquerda brasileira se encontrava mergulhada em sua mais grave crise, depois de ter sido esmagada pela repressão da ditadura.
Um dos pontos importantes da reconstituição de Gorender é o lugar dado ao período pré-64, particularmente à intensa fase das lutas populares entre 1961 e 1964, quando grandes contingentes de operários, estudantes, camponeses e setores de classe média, sem falar nos sargentos e alguns segmentos da própria oficialidade das Forças Armadas, movimentaram-se pela consecução das chamadas "Reformas de Base", um conjunto de reivindicações apresentadas como capazes de promover um desenvolvimento econômico com maior distribuição de renda e aprofundar a democracia no país. A derrota da esquerda e dos movimentos populares em 64 acabou por generalizar a impressão de que o movimento nesse período não tinha tido a relevância que se dizia, ou, no melhor dos casos, era excessivamente superficial. Depois de ler os capítulos que o autor dedica a esta fase, a análise sobre ela terá de ser mais judiciosa.
Mas esta primeira parte tem como função básica introduzir elementos de compreensão para o que vem depois. Entre 1964 e 1968, a despeito da perplexidade e mesmo de reações primárias de certos setores da esquerda frente ao golpe, criam-se condições para uma intervenção desta em alguns movimentos sociais de grande importância, como é o caso do movimento operário e do estudantil, ambos granjeando simpatias junto a camadas das classes médias que se sentiam ludibriadas pelos militares.
O grande derrotado na esquerda é o PCB, e do seu interior, principalmente, vão surgir muitas das organizações que começarão a atuar nesse período, algumas com claras definições pelo desencadeamento a curto prazo de ações militares contra o governo.
Num outro cenário desenvolve-se, igualmente, uma crise no interior dos grupos que deram ou apoiaram o golpe. O resultado deste último enfrentamento é o fechamento de 13 de dezembro de 68 (o AI-5), quando o governo cria as condições, entre outras coisas, para reprimir a esquerda com toda a impunidade. Gorender mostra como modificam-se as condições de luta. A esquerda corta-se das massas, mas continua a apostar na iminência da crise do capitalismo brasileiro, que criaria condições para a luta revolucionária (tida como sinônimo de luta armada). O período que vai de 68/69 até 74 é o desmantelamento total da esquerda revolucionária, o que o Estado consegue através de uma política de utilização sistemática da tortura.
Talvez fosse importante que Gorender enfatizasse mais o fato de que a derrota da esquerda - da nova e da velha - não se deve tanto à repressão, que foi violenta, mas tem de ser creditada em muito aos próprios erros das organizações. Ele tem presente este fato, e o afirma muitas vezes, mas alguns aspectos ficam a nos exigir maior aprofundamento. Por exemplo, em que medida o fracasso não se deve ao fato de que a ruptura da nova esquerda com a velha foi mais aparente do que real, não só quanto à caracterização de seu projeto de revolução, como por sua incapacidade de repensar o problema do partido político, elitista e messiânico, e pela ausência de uma reflexão mais de fundo sobre o problema da democracia.
Estas discussões têm uma importância particular para o PT hoje. No interior do partido militam milhares de companheiros vindos dessas organizações de esquerda. Uma grande maioria não chegou a realizar um ajuste de contas com seu passado. Coisa que o livro de Gorender em muito contribuirá para que ocorra. Somente isto já aconselha sua leitura e, sobretudo, sua discussão.
* Marco Aurélio Garcia, professor aposentado da Unicamp, é assessor especial para Assuntos Internacionais do Governo Federal (artigo elaborado em dezembro/1987).